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Imagem: Reprodução / Época











O edifício Patriarca, com sua estrutura retangular em mármore acinzentado e seus vidros negros espelhados, destaca-se sombriamente na paisagem de Curitiba – especialmente nos dias chuvosos e nublados, que são muitos. O Patriarca assenhora-se das cercanias: não há construção que faça sombra nele. Fora, a larga caixa negra de nove andares, sem curvas ou vida, sugere apenas segredos. Dentro, o Patriarca abriga escritórios de algumas das maiores empresas do país. No 2º andar, funciona a filial no Paraná da Odebrecht, a mais rica e influente empreiteira da América Latina. A Petrobras tem escritórios em dois andares: no 9º e no 7º. Neste, divide espaço com um inquilino novo e discreto – um inquilino que não permite sequer que seu nome seja exibido na portaria do Patriarca. Num conjunto modesto de salas, estabeleceu-se há alguns meses o grupo de elite responsável pela investigação que sacode o Brasil. São os homens da força-tarefa montada pelo Ministério Público Federal na Operação Lava Jato.

O MPF precisou alugar as salas porque, com o rápido avanço das investigações – que de grandes se tornaram colossais –, os procuradores não tinham espaço, equipe e segurança suficientes para conduzir os trabalhos. Para eles, bastou atravessar a rua: o Patriarca fica em frente à sede do MPF em Curitiba. Dividir parede com o inimigo – quer dizer, o alvo – diverte a equipe. “Já pensamos em bater lá de madrugada para pegar documentos”, brinca um deles. “Pouparia trabalho aqui.” Dar expediente cinco andares acima da Odebrecht, um dos próximos alvos dos procuradores, causa menos sorrisos. Eles estão ávidos para pegar de vez a empreiteira que, suspeitam, faz parte do cartel que domina as grandes obras públicas do país. Desde o começo das investigações, a Odebrecht nega qualquer irregularidade, embora tenha aparecido na delação premiada do ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco.

Uma pequena porta de vidro abre-se para o ambiente de trabalho dos procuradores. É austero, até apertado. A impressora fica num corredor estreito, o que exige dribles constantes daqueles que gostam de zanzar entre as salas. Um guarda protege o local, sempre de pé, ao lado da secretária que cuida do dia a dia – dias que, quase sempre, varam a madrugada. Trabalha-se muito ali, como demonstra a sucessão de números superlativos da maior investigação já feita no país: 12 acordos de delação premiada, 86 pessoas denunciadas, 232 empresas investigadas, dezenas de contas secretas bloqueadas em paraísos fiscais, R$ 500 milhões recuperados aos cofres públicos… Não há processo criminal, na história da República, que chegue remotamente perto dessas façanhas.

Os números impressionam, mas não são eles que fornecem a dimensão histórica – épica até – do que a Lava Jato significa para o Brasil. Em menos de um ano, a corrupção endêmica na Petrobras, sobre a qual muito se falava e pouco se sabia, foi exposta minuciosa e cotidianamente aos brasileiros – até ser, enfim, implodida pela caneta severa do juiz federal Sergio Moro, responsável pelo caso. Três ex-diretores da Petrobras foram presos e alguns dos maiores executivos do país estão na cadeia, numa onda inédita de punição de corruptos no país. Do PT ao PMDB, passando por PP e outros partidos, a base aliada dos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff pode tomar, em breve, uma surra judicial que fará o mensalão parecer um piparote. Ninguém duvida: a bancada da Papuda precisará de mais beliches.

Desde 20 de março do ano passado, quando Paulo Roberto Costa foi preso, Brasília entrou num liquidificador político – que parece girar cada vez mais rápido. Foi uma surpresa para quase todos os políticos, empreiteiros e operadores da República. Muitos permanecem perplexos. Não entendem como foi possível ligar o liquidificador. Não percebem que a Lava Jato resulta do feliz encontro de avanços institucionais do país com uma geração de investigadores com senso agudo de missão.

Há avanços relativamente recentes, como leis mais claras sobre o instituto da delação premiada, mais duras nos casos de lavagem de dinheiro e mais eficientes na recuperação de dinheiro público desviado. São ferramentas conquistadas por essa mesma geração – de procuradores, delegados e juízes. Se em alguns casos não conseguiam produzir provas, em muitos outros frustravam-se com leis inadequadas e um Judiciário claramente leniente com os poderosos. Eles se cansaram disso. Conseguiram por fora (no Congresso, mudando leis) e por dentro (mudando a mentalidade de juízes e investigadores) mudar as regras do jogo. A impunidade não está mais garantida de saída, como antes. E nem será assegurada com tanta facilidade nos Tribunais Superiores.

A missão da “meninada” – como os procuradores da força-tarefa são chamados carinhosamente pelos colegas mais velhos – é enfiar a primeira estaca no coração da grande corrupção do país. O que o Brasil chama de petrolão é, para eles, apenas uma parte – embora uma parte mastodôntica – da corrupção institucionalizada do país. Como dizem todos os delatores da Lava Jato, e como se percebe nos demais casos criminais substantivos, o toma lá dá cá – ou quid pro quo, como usam em latim os americanos – está na raiz de nossa tradição corrupta. A corrupção exige, quase sempre, dois lados: o que paga propina e o que recebe propina. Pode haver intermediários, como Youssefs e Vaccaris, mas as duas pontas certamente existem. Até o mensalão e, principalmente, a Lava Jato, o lado que pagava (os empresários) não era punido.

Não há vítimas ou chefes numa quadrilha como a do petrolão. Os empresários, os doleiros, os operadores, os tesoureiros, os diretores da Petrobras, os políticos envolvidos – todos tinham a opção de não cobrar e não pagar propina. Mas todos queriam ganhar dinheiro. A sustentação política providenciada pelos governos Lula e Dilma azeitava e encarecia a corrupção. “O esquema na Petrobras era horizontal, e não vertical”, diz o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa. “Os três tipos de atores dessa trama – empresários, operadores e agentes públicos – agiam de forma livre e consciente, para lucrar. Era um modelo de negócios corrupto que não tinha chefe, mas parceiros.”

Na visão da meninada, o esquema existiria mesmo sem a participação do PT – como, de resto, existia antes, conforme demonstram as provas. Essa constatação não diminui a responsabilidade dos petistas na sustentação do esquema. Mas ignorá-la não permite combater a corrupção de forma eficaz, ampla e completa, como eles desejam. “Nós somos apartidários e não temos qualquer agenda oculta”, diz um dos procuradores. “Queremos desmontar todos os esquemas que forem descobertos no decorrer desta investigação, punindo todos os tipos de envolvidos de forma exemplar.”

A meninada age unida. Em tese, não há líderes, mas dois deles se destacam. O coordenador Deltan Dallagnol, de 35 anos, por combinar preparo técnico, foco e disposição para virar noites seguidas; o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, de 50 anos, pela experiência em casos difíceis (atuou nos processos do Banestado) e visão estratégica. “Estamos numa guerra”, diz um dos procuradores. “Para enfrentar forças tão poderosas, é necessário calcular lá na frente e agir com frieza.”

A tensão na pequena sala de guerra, de apenas 30 metros quadrados, é permanente. Ali, há somente computadores e um quadro branco para anotações. “Sabemos que a investigação pode ser abortada a qualquer momento. Basta uma decisão do Supremo”, diz um deles, com a experiência de quem já passou muitas vezes por essa situação. Diante desse temor, e também por aprender com os erros de investigações passadas, os procuradores resolveram, desde o começo, fatiar ao máximo as centenas de casos que compõem a Lava Jato. “Sempre que surge um fato novo, investigamos rápido e, se houver mais evidências, oferecemos logo a denúncia à Justiça”, diz um dos estrategistas. “Os casos são apreciados mais rapidamente do que se juntássemos muitos fatos criminosos num só processo, como fizeram no mensalão. E é mais difícil derrubar centenas de processos do que apenas um.” Eles querem ir muito mais longe: “Vamos desmontar esse cartel em todas as obras públicas em que eles atuaram, não interessa em qual órgão”. Ainda virarão muitas noites no Patriarca. E não faltam procuradores e delegados que se inspiram no trabalho feito no Paraná. Esse modelo de atuação tende a se multiplicar pelo país. Se prevalecer, terá um impacto político, judicial e cultural ainda difícil de imaginar.

É claro que os méritos da Lava Jato não se devem apenas ao trabalho da força-tarefa. Trata-se de um tripé (quase sempre) harmonioso: a meninada, os delegados da Polícia Federal e o juiz Sergio Moro. Muitos advogados dos presos e réus acusam Moro de agir em demasiada sintonia com os investigadores, afastando-se da serenidade e equidistância que se espera dos magistrados. Mas, até o momento, não conseguiram, em centenas de recursos a três instâncias superiores, reverter qualquer decisão de Moro. Com exceção da soltura do ex-diretor de Serviços Renato Duque, apadrinhado pelo PT. Ele foi solto pelo ministro Teori Zavascki, relator do caso no Supremo.

A harmonia entre esse tripé deve-se, em larga medida, à formação intelectual daqueles que o compõem. Todos beberam no Direito Criminal americano e na forma como ele lida com crimes de colarinho branco. É um dos sistemas mais severos – e controversos – do mundo. Enxerga justiça sobretudo na recuperação do dinheiro desviado ou fraudado, com multas pesadas. Para conseguir acordos ou condenações, permite delações premiadas a granel. O tripé da Lava Jato, ao pensar e agir, inspira-se nesse modelo – e numa imitação dele, a Operação Mãos Limpas, que limpou a política italiana nos anos 1990.

A meninada está tão animada que pretende divulgar, em breve, sugestões de novas leis para aperfeiçoar o combate à corrupção no Brasil. Com essa turma, não há chance de acordo. Ao contrário: quanto mais se fala em Brasília em poupar as empreiteiras, mais determinados eles ficam. Em novembro, no dia anterior à prisão dos maiores empreiteiros do país, uma equipe da Advocacia-Geral da União e do Banco do Brasil esteve no Patriarca. A pedido da presidente Dilma, eles haviam calculado o que aconteceria, na economia do país, se as maiores empreiteiras do Brasil quebrassem. Apresentaram o já velho argumento de que o país pararia. Quase foram enxotados. “Parecia uma chantagem”, diz um dos procuradores.

A mesma apresentação fora feita em Brasília, ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e sua equipe. Janot e seus assessores ficaram mudos – e deram de ombros. “O destino das empreiteiras será decidido no Paraná. Elas não têm foro no Supremo”, diz um dos procuradores que estiveram na reunião. Com as delações de Paulo Roberto e Youssef, Janot montou uma força-tarefa própria, numa sala de guerra contígua a seu gabinete. A sala é menos acanhada que a da meninada. Tem uma bela vista para o Lago Paranoá. Entre baias espaçosas e computadores de última geração, há uma longa mesa oval de madeira, para reuniões. Há três alegres quadros na parede, que contrastam com um pesado cofre cinza. É ali que ficam os HDs criptografados, que contêm os vídeos das delações premiadas e os extratos de contas secretas em paraísos fiscais. Quando o cofre for aberto, nas próximas semanas, o Brasil terá mudado. 




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