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Por Irapuan Costa Junior

O gramscismo chegou ao governo antes de chegar ao poder. As fortes instituições reagiram à busca da hegemonia e não houve clima para a implantação de reeleições sucessivas. Nem por isso estamos a salvo
Karl Marx, Vladimir Lênin e Antonio Gramsci: o alemão e o russo foram superados pelo filósofo italiano, que é mais perspicaz
O filósofo italiano Antonio Gramsci é tido como um dos mais importantes formuladores comunistas. Não está fora de questão que seja o mais importante. Esse sardo franzino, casado com uma russa, nascido em 1891, chegou a trabalhar com Mussolini na redação do jornal socialista italiano “Avanti!”, em 1915. Foi preso por ação do mesmo Mussolini em 1926, e condenado a vinte anos de prisão. Recebeu liberdade condicional por motivo de saúde e morreu em uma clínica romana em 1937.

Na prisão escreveu suas reflexões, publicadas no Brasil pela editora Civilização Brasileira, na década de 1970, com o título de “Cadernos do Cárcere” (quatro volumes). Não são fáceis de ler. Gramsci escrevia quase que em código, para que os censores não confiscassem suas “lições”, que saíam da prisão por uma sua cunhada, funcionária da embaixada soviética em Roma.

Eram entregues ao líder comunista italiano Palmiro Togliatti, exilado em Moscou durante o fascismo e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

O leitor que quiser se aprofundar em seu raciocínio deve buscar um guia da obra, com um glossário, que lhe sirva de orientação.

Há vários, de esquerda ou conservadores. Marx foi e é um mito para os comunistas. No entanto, suas formulações sempre ficaram longe do real. A “crise do capitalismo”, em que a ganância dos capitalistas provocaria uma concentração de riqueza cada vez maior na mão de poucos, com um crescente empobrecimento do operariado, que ao final se revoltaria, provocando a “crise final do capitalismo” e a “ditadura do proletariado”, mostrou-se uma escatologia sem qualquer parentesco com a realidade.

Nos países verdadeiramente capitalistas, patrões e empregados prosperam paralelamente, bem ao contrário do que aconteceu em todos os países comunistas, onde não se conseguiu prover aos trabalhadores um mínimo de conforto. Zero para Marx. Lênin (co­mo Rosa Luxemburgo), baseado principalmente na experiência da revolução comunista russa, julgava que um assalto ao Estado, por um braço armado do proletariado, como acontecera ali, seria de molde a apressar a derrocada do capitalismo e a implantar o socialismo, e logo o comunismo, em qualquer parte do globo. Fracassou essa teoria na Alemanha, na Itália, na Polônia, e até no Brasil (com a Intentona Comunista de 1935).

As nações que se tornaram comunistas, com raríssimas exceções, foram as da ocupação soviética ao fim da Segunda Guerra, ou por suas consequências. Zero para Lênin. Gramsci observava tudo isso da cadeia. E escrevia. Era muito mais inteligente que seus mestres, embora, comunista disciplinado, não os criticasse, e apenas apontasse “correções de rumo”.

O que dizia Gramsci, que via mais fundo e mais longe que Marx e Lênin: o golpe de Estado deu certo na Rússia. Sociedades como a russa czarista (que ele chamou de “sociedades orientais”) têm um Estado forte, mas não têm organizações civis importantes como respaldo. Tomado o Estado, só resta “educar” a massa amorfa, o povo, no rumo socialista, usando o próprio Estado, agora submetido, como tudo mais, ao partido (comunista, e único). Nas sociedades com forte presença da “sociedade civil” (sociedades ocidentais, dizia Gramsci) o golpe de Estado não funciona.

Tomar o Estado significa apenas tomar uma fortaleza avançada. Atrás dela estão inúmeras “trincheiras e casamatas” não neutralizadas. Re­fe­ria-se às organizações burguesas co­mo igreja, sindicatos, universidades, imprensa. Não se pode fazer, para tomar estas sociedades, a “guerra de movimento”, que teve sucesso na Rússia. É preciso fazer uma “guerra de posição”, desgastar essas trincheiras e casamatas, neutralizá-las para que, tomado o Estado, se tenha também o poder, e não surjam resistências.

É preciso que o proletariado seja “hegemônico” sobre as demais classes, que exista o “consenso” sobre sua visão de mundo. Essa visão, evidentemente, é a comunista. Gramsci usava as imagens da Primeira Guerra Mundial. No que consistia conquistar essa hegemonia: organizar o partido das classes oprimidas (proletariado, campesinato e demais “excluídos” da sociedade burguesa), formar dirigentes, organizar entidades não estatais de apoio, fazer alianças ainda que com partidos ou entidades adversárias, conquistar posições nos organismos da sociedade civil burguesa e nos órgãos estatais (fase econômico-corporativa). Depois, lutar efetivamente pela hegemonia das classes subalternas sobre a classe dominante. Os valores tradicionais das classes burguesas deveriam ser pacientemente destruídos, e substituídos pela nova “visão da sociedade e do mundo”. Valores culturais deveriam ser contestados e apontados outros, mais de acordo com a visão das classes dominadas, e de molde a permitir a ascensão destas.

O mesmo deveria ocorrer com valores morais e éticos, de modo a neutralizar as trincheiras burguesas. O Judiciário deveria ser criticado em suas decisões legalistas, e incentivado a adotar decisões “sociais”, ignorando os dispositivos legais. Pressão deveria ser exercida nas decisões que pudessem prejudicar o partido, seus membros, simpatizantes, ou simples elementos das “classes subalternas”, independente das cominações legais a que estivessem sujeitos. As casas legislativas deveriam ser objeto de constante crítica e desmoralização, enquanto os representantes do partido “proletário” surgiriam como únicos acima das críticas. As Forças Armadas deveriam ficar sob constante açulamento, e deveriam ser vistas como desnecessárias, perdulárias, ignorantes, ditatoriais.

As polícias seriam sempre acusadas de truculência, violência e corrupção, enquanto a marginalidade deveria ser alvo da proteção dos direitos humanos e da tolerância, por pertencer à classe subalterna. Se o bandido age à margem da lei é apenas por falta de opções, sendo a marginalidade fruto, pois, da injustiça social e da exclusão burguesa. Nada mais justo, pois, que os burgueses sofram na pele, sem reclamar, o castigo de serem “expropriados” de seus bens, e até às vezes “justiçados” pelos “excluídos”.

A Igreja Católica deveria ser lembrada por suas falhas, como a pedofilia, a riqueza e o alinhamento com a aristocracia. Não se deveria falar nas suas qualidades, como as modelares instituições de ensino e caridade. Os padres “socialistas” deveriam ser tratados como santos, exaltados como portadores de todas as virtudes. As minorias deveriam ser despertadas para a marginalização a que foram sujeitas e seriam chamadas à vingança contra a dominação burguesa, fossem minorias raciais, étnicas ou sexuais.

Todo o sistema capitalista deveria ser demonizado: os fazendeiros como latifundiários exploradores de mão de obra escrava, depredadores da natureza; os industriais como gananciosos apropriadores da mais valia e sonegadores; os banqueiros como parasitas especuladores; os órgãos de imprensa como vendidos ao capital nacional e estrangeiro.

Os intelectuais tradicionais deveriam ser cooptados, e os intelectuais da “classe”, os dito orgânicos (isto é, todos os cidadãos que fossem inteiramente obedientes ao partido), deveriam ser estimulados a um incessante trabalho de convencimento e doutrinação (fase da hegemonia). Numa última fase, neutralizados os organismos burgueses da sociedade civil, quando a sociedade já aceita a imposição de novos valores culturais, éticos e morais, já não mais tem mecanismos de reação, é hora de tomar o poder, instituir o socialismo e caminhar para a etapa final, o comunismo (fase estatal).

Agora, o partido é quem detém, na verdade a hegemonia. É partido único e aponta os dirigentes. É o “moderno príncipe”, como dizia Gramsci, admirador de Maquiavel.

Desde a instituição do Foro de São Paulo (uma reunião de en­ti­dades marxistas latino-americanas) em 1990, uma ação organizada das esquerdas, com solidariedade incondicional dos participantes (maior mesmo que os in­te­resses nacionais) fez com que o so­cialismo avançasse, detendo o poder na Venezuela, Bolívia e E­quador e caminhando em vários outros países, Brasil inclusive.

No Brasil, o gramscismo chegou ao governo antes de chegar ao poder. As fortes instituições reagiram à busca da “hegemonia”, como vimos com a questão do mensalão e da tentativa de censurar a imprensa. Não houve clima para uma implantação de reeleições sucessivas, como na Venezuela. Nem por isso estamos a salvo. Estamos já em plena fase gramscista de busca da hegemonia. Que não está parada.  




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